É fato que para o artista momentos turbulentos podem servir de inspiração e render obras notáveis. E é justamente essa a primeira impressão de BR-Lockdown, álbum inaugural do trema”, projeto idealizado por Lucas Lippaus, guitarrista, compositor e produtor. Presente em bandas de destaque da cena indie brasileira, como Herod, Dolphins on Drugs e Fluhe, o álbum de estreia do trema¨ apresenta um trabalho coeso em conceito e formato, onde nenhuma das músicas passa de pouco mais de um minuto e meio de duração.
“Todas as músicas saíram curtas naturalmente. Gosto muito do efeito ‘tiro’, algo direto ao ponto e rápido, e que causa um baque num primeiro contato a ponto de precisar repetir a experiência para melhor absorção”, explica Lippaus.
Segundo Lucas, foram precisos somente três dias de março de 2021 para estruturar todas as onze faixas que compõem BR-Lockdown, trabalho que sairá pelo coletivo Lança. A necessidade de exercer a criatividade durante a pandemia de covid-19 foi o pontapé inicial para dar vida ao disco, carregado de guitarras com texturas de no wave e noise, riffs inteligentes e uma interessante variedade de atmosferas sonoras.
“Diria que a ideia do BR-Lockdown surgiu devido a vários acontecimentos pessoais. Em 2021 me mudei para Indaiatuba (SP) com minha esposa e filha, Paula e Marina, o que causou um choque cultural para nós, principalmente pela cidade ter um perfil bolsonarista e negligenciar a pandemia em si. Por estar isolado no interior, comecei a sentir necessidade de produzir música. Comprei uma interface, instalei o GarageBand num Mac antigo da Paula e comecei a produzir. Todos os recursos saíram disso, até mesmo foi utilizado uma IA baterista do software para a composição das linhas de bateria, o tal ‘Max’”.
Lippaus também conta que acabou se inspirando muito na estética sombria e agressiva do no-wave e do industrial dos anos 1980, como Sonic Youth, Big Black, Einstürzende Neubauten, entre outras. “Também me inspirei muito em bandas de noise-rock e post-hardcore como Slint, Shellac, Fugazi”.
Outro ponto a favor de BR-Lockdown é o seleto time de participações, com membros de bandas da cena alternativa brasileira, como Supercordas, In Venus, Bratislava, Der Baum, Giallos, Twinpine(s), Deafkids, La Burca, Cristo Bomba e Crime Caqui.
Segundo Lucas, a ideia era convidar um vocalista diferente para cada faixa e deixar que fizessem os arranjos vocais e as letras. O resultado foi uma miscelânea de temas e estilos, o que faz do debut do trema¨ um trabalho bastante interessante para quem também acompanha as bandas dos convidados.
“Para cada música eu tinha em mente um estilo de vocal, já pensando também em quem poderia fazer algo interessante para as mesmas. Todos os convidados compraram o a ideia do projeto, entregando letras e linhas de vocais, ao meu ver, incríveis. São músicos e musicistas muito talentosos, mas que vêm sofrendo consequências trazidas pela pandemia. Acredito que exista um desabafo da parte deles também. Por tudo isso, creio que o BR-Lockdown seja tanto deles quanto meu. As músicas não seriam o que são se não fosse pelo trabalho dos convidados”, comenta Lippaus.
Seja em “Fear”, com vocais rasgados de Fernanda Gamarano (Der Baum), ou em “Cinza”, com Cint Murphy (In Venus) reclamando que de fato “tá tudo cinza”, a tracklist passeia na espiral de sentimentos do confinamento e convence. Aliás, os contrastes entre as músicas também enriquecem BR-Lockdown. Victor Meira (Bratislava) canta em “Sobra” uma mini crônica acompanhada de uma incrível trama de baixo e guitarras, enquanto que em “Aquele Corre Loko” e “Nada Justifica”, Lippaus assume o peso das letras e vocais de Sandrox Duarte (Cristo Bomba) e Claudio Cox (Giallos), respectivamente.
Para fechar o pacote, o projeto do trema¨ ainda conta com onze videoclipes, um para cada faixa, todos eles produções da Bad Chinchilla, assinados por Fábio Salvador e Paulo Valentim.
“A criação da história visual de cada vídeo tinha como inspiração a própria música, que tanto a parte instrumental quanto a vocal continham sentimentos em relação a pandemia. O processo de ilustrar essas músicas e unir os nossos próprios sentimentos em relação a esses dois anos de covid-19 – até o momento – foi encarado como um desafio criativo e ao mesmo tempo um desabafo. Vale dizer que os vídeos tiveram a limitação de serem feitos a partir de bancos de imagem para respeitar o distanciamento social”, explica Fábio.
No fim das contas, BR-Lockdown termina sendo uma grata surpresa, sobretudo por ser um trabalho coletivo que cristaliza um momento difícil e sintetiza a qualidade das bandas envolvidas no projeto, provando que a cena da música independente brasileira continua ativa, provocante e conectada a seu tempo.