Em meio a uma nação rachada e o mundo à espreita de uma pandemia, A Falange torna mostrar sua cara, dessa vez com “Pericardium”, um trabalho que poderia ser simploriamente taxado de “ousado”, mas vai um tanto mais além.
Vamos “rebobinar” um pouco pra não embolar a fita. A Falange surgiu na zona norte de Teresina ainda na primeira metade dos anos 2000,em torno de um time fino: Marcos Santana (bateria, programação e engenharia de som), Thomaz Jedson (guitarra), Manuel Renato (guitarra), e Alexandre Aquino (vocal e letras). Já de cara chamavam a atenção não apenas por trazerem uma linguagem até então nova ao cenário, influências do metalcore de bandas de nomes quilométricos, do math-rock multifacetado do selo Ipecap e, talvez o maior dos espantos, letras erráticas em português, já estreitando um espaço entre artista e público.
Nessa pegada vieram o EP “O Parasita” (2008) e “O Rogar dos Malditos” (2012), este um trabalho que demorou certo tempo pra ver a luz do dia, e que buscava amarrar a já enorme quantidade de material que a banda produzia na época, visto que foram pioneiros nas gravações caseiras no estado. A formatação já estava toda lá: guitarras pesadas em uníssono com ritmos quebrados, temáticas carregadas de um simbolismo quase blakeano, traduzindo frustrações, ansiedades e desembocando em um niilismo filosófico que passa longe de cramulhões, capetas e capirotes.
Um hiato de cinco anos a partir de 2013 não foi suficiente pra secar a torneira. Nesse meio tempo Manuel Renato lançou mão de um projeto (Natea) e uma nova banda, Insular, com Jedson e Marcos também na formação, mais voltada aos ouvidos alternativos. 2018 trouxe de volta A Falange com uma nova produção de canções com letras de Alexandre Aquino, e a preocupação de fixar um baixista à formação, na figura de Will Felipe.
Todo esse alinhamento encaminhou “Pericardium” pra sair em um tempo bem particular. O guru da classe média, letrista e escritor Paulo Coelho há muito já cravou que “não existem coincidências”, logo, isso torna “Pericardium” uma caixa de ressonância de tempos perdidos, de desilusão e arrependimento, da falta de respostas e da busca vã pela porta da saída.
Pros que aprenderam a consumir música na era das plataformas digitais cabe informar que que álbuns, sim, discos cheios, são registros instantâneos de uma era. Logo podem mais na frente ser resgates de um tempo, marcos. “Pericardium” abre com “Sob o céu de um sol só”, advertindo sobre as construções de narrativa (“eu sou o boato fermentado/Que o mito criado assombrou”) e a fome cega de poder de quem usa dessa ferramenta (“Mito furioso – assassino de quem o despertou”). “Levante”, o single clip do trabalho, é uma canção de frustrada e remissão dos que procuraram mudança e depois se viram enganados (“Vai faltar corda e munição/Pra lidar com a frustração e remissão dessa nação”). O niilismo se faz presente em “O espaço que o tempo deixou”: “Herdeiros do talvez/E mais uma vez/Órfãos de uma era”.
“Condenados estamos/À um espaço em que todos falam/Mas ninguém conversa/Condenados estamos /À um tempo em que todos gritam/Mas ninguém escuta”, brada “Tempo de Sangria”, que reflete sobre os tempos de intolerância, enquanto musicalmente mostra-se a faixa mais ousada, estruturalmente, do trabalho, cravando cármicos 17 minutos de execução. “O Inimigo Não é Você” captura pandemia, o desleixo dos governantes e a apatia de uma nação polarizada (“Precisamos dormir e sonhar /Precisamos acordar e lutar/Hoje é dia de lutar e vencer/Por hoje esqueço que o inimigo é você”). “Pericardium” encerra com “Uma Canção Esquecida”, onde somos conclamados a olhar para uma luz, para além das figuras na parede da caverna (“Baixa a guarda e enche o pulmão/Revele a angústia aqui sentado no chão /Se o verso dela te trouxe até a mim/É no refrão que entregarei tua fração/De felicidade e será o fim da ansiedade /Te farei dono dessa canção”). “Pericardium” faz a função de trazer à reflexão os que não percebem o óbvio do presente, e contará ao futuro sobre corações negros que pulsaram no escuro.