ENTREVISTA | De Tânatos a Eros, o corpo-poético feminista de Isabela Penov

Livros

Não é de hoje que o corpo feminino vem sendo representado como mero objeto de desejo masculino, inclusive dentro da literatura, o que contribui para um imaginário opressivo e predatório à sexualidade das mulheres.

É a partir de uma contraposição a esse cenário que a poeta, fotógrafa, atriz e professora paulistana Isabela Penov (@isabela.penov) concebe seu terceiro livro de poemas, “Do Dilúvio Entre Tuas Coxas” (OIA Editora, 88 páginas), contemplado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo, o ProAC.

Isabela Penov nasceu em 1986, em São Paulo, capital. É feminista, macumbeira e comunista. Entende-se como poeta desde que aprendeu a ler e a escrever, e sempre se interessou por diversas outras linguagens artísticas. Segundo ela, esse era o seu “jeito de brincar”. Hoje, é autora de três livros: “Aves Marias (ou A Revoada)”, que saiu pela Editora Patuá, em 2018, e “Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos”, realizado com o apoio do Rumos, do Itaú Cultural e “Do Dilúvio Entre Tuas Coxas”(OIA Editora), com apoio do ProAC.

Do dilúvio entre tuas coxas – Isabela Penov

Confira a entrevista completa com a autora, abaixo:


Se você pudesse resumir, quais são os principais temas da obra?

Erotismo, erotismo feminino, poesia erótica, poesia erótica escrita por mulheres, sexualidade feminina, feminismo e sexualidade.

Por que tratar deles?

Ainda nos dias atuais, é a voz falocêntrica que costuma reverberar no discurso erótico. Na literatura, já sabemos que muitos dos textos considerados eróticos ou pornográficos e que circulavam antigamente através de pseudônimos ou de anonimato foram escritos por mulheres. Ou seja, para nós mulheres, a autoria é historicamente o lugar da ausência, do vazio e da vergonha, mesmo lugar obscuro ao qual foi relegada nossa sexualidade. A literatura erótica reservou quase sempre à mulher um lugar de alteridade, com raras e importantes exceções. Nesse sentido, existe uma espécie de binarismo (presente na arte de modo geral) de homem/espectador e mulher/espetáculo que busquei questionar ao me colocar como autora de um livro erótico. Como poeta mulher, assumir a obscenidade como

eixo de toda uma obra sem ceder aos fetichismos pensados para agradar ao homem, objetiva reivindicar, a um só tempo, a autonomia da palavra e da sexualidade feminina para deixar de ser apenas um negativo da palavra e da sexualidade masculina.

O que motivou a escrita de “Do Dilúvio entre tuas Coxas”? Como foi o processo de escrita?

A escrita d’O Dilúvio foi estimulada pelo desejo de contribuir com a literatura erótica escrita por mulheres por meio de uma poesia centrada na experiência, no corpo e na visão feminina e feminista da sexualidade. Procurei escrever poemas fundados em sinestesias ligadas às umidades, cheiros, gostos, pelos e desejos íntimos de mulheres, seja em relações heterossexuais ou homossexuais, ou na masturbação e na ainda sempre rebelde descoberta de si mesmas. A regra que perpassa todo o trabalho é tão somente a busca pelo deslocamento do falocentrismo para uma visão mais ampla do erotismo que tem na mulher um sujeito, e não um objeto.

Para isso, dividi o livro em quatro partes. A primeira, Minhas Umidades nas Suas, trata exatamente das umidades, pelos, cheiros, envolvidos no sexo, e que são vistos ainda como tabu. A segunda, Carne Verbo, traça um paralelo entre o ato sexual e o ato poético. A terceira, Felix Culpa, fricciona a sexualidade e a religião, e também a experiência carnal e a espiritual. A última, Amor, Romã, traz Eros em sua manifestação mais típica, manifesto no campo do amor romântico, afetivo-sexual.

O processo de escrita foi bastante desafiador, pois havia acabado de sair do lançamento do livro anterior, Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos, cujo eixo temático era Mulher, Loucura e Patriarcado. É um livro bastante denso, do ponto de vista temático e, talvez, técnico também, e foi escrito a partir de feridas pessoais ainda não cicatrizadas, ou seja, foi uma demanda emocional muito grande. Saí dessa paisagem para outra totalmente diferente, diria oposta: o universo da libido, da sensualidade, pura pulsão de vida.

Por conta de serem dois livros escritos com apoio de editais públicos, havia um cronograma a seguir, então não poderia dar um intervalo entre ambos. Essa transição foi bastante difícil, mas agora entendo como essa trajetória foi bela. Foi como submergir de um universo simbólico de dor e invisibilidade para um largo campo de celebração do corpo feminino, da sua potência libertária – passei do grito de dor ao grito de prazer, ainda que furioso. Agora vejo que um livro foi quase como uma continuidade do outro, mesmo sendo seu oposto, e que não foi à toa que propus esses projetos em sequência. Acredito que tenha sido um belo projeto do meu inconsciente saltar de Tânatos para Eros.

Quais obras influenciaram diretamente a produção do livro?
Diversos textos de Audre Lorde sobre o assunto, a obra da poeta Gilka Machado (a primeira mulher a publicar versos eróticos no Brasil, em 1915), Octavio Paz com seu A Dupla Chama, o clássico O Erotismo, de Georges Bataille. Foi também importantíssima a leitura de O Corpo Desvelado: contos eróticos brasileiros, organizado pela pesquisadora Eliane Robert Moraes; a antologia 69 Poemas e Alguns Ensaios, com poemas eróticos exclusivamente escritos por mulheres; e Poesia Erótica em tradução de José Paulo Paes.

Quais autores (e autoras) você considera suas referências?

Carlos Drummond, Clarice Lispector, Eduardo Galeano, Wislawa Szymborska, Alejandra Pizarnik, são nomes de pessoas cujas obras sempre releio, como se voltasse para casa depois de uma viagem. São fontes inesgotáveis, me fazem sentir muitas vezes o primeiro espanto diante da poesia, aquele que tive ainda na infância. Na literatura contemporânea, citando poetas, posso citar Mar Becker, Micheliny Verunschk, Adriane Garcia, Ana Martins Marques, dentre muitas pessoas de uma lista que não cessa de aumentar. A canção brasileira é uma das minhas influências mais importantes também. Nesse trabalho em particular escutei continuamente os trabalhos da Iara Rennó, foi uma referência importante.

Como você descreveria seu estilo de escrita?

Reconheço uma poética experimental, mas não hermética – e essa é uma preocupação minha; muito atenta ao ritmo e à sonoridade, possivelmente pela minha formação teatral: escrevo pensando em dizer em voz alta. Além disso, também, muitas vezes híbrida entre prosa e poesia, gosto muito de passear entre ambas.


Como é o seu processo de escrita?


Meu processo como escritora é sobretudo um processo de leitora: escrevo enquanto leio. Leio com um caderno de anotações ao lado, e uma única página lida pode render uma dezena de páginas anotadas. Reverberações de uma leitura se dão por dias: no metrô, durante o almoço, às vezes paro na calçada para anotar algo no bloco de notas do celular (que é onde praticamente guardo todo o rascunho dos livros e ideias esparsas.) É por meio principalmente das leituras e da música que mergulho na paisagem simbólica que desejo comunicar através da escrita. Mas, ainda que as leituras não tenham qualquer relação com o projeto ao qual me dedico, fico tão imersa naquele universo escolhido que tudo o que me espanta, esteticamente ou não, me sugere ideias, imagens voltadas ao que estou escrevendo. Isso inclui notícias, filmes, peças, cenas que vejo na rua, histórias que ouço. O que quero dizer, basicamente é que, quando estou escrevendo um livro, é como se tudo no mundo me falasse sobre ele num dialeto simbólico particular. Isso é maravilhoso, e exaustivo, às vezes. É como se eu simplesmente não tivesse outra escolha e não pudesse pensar em mais nada.


Você tem alguma meta diária de escrita?


Como mulher-mãe-trabalhadora, minha rotina geralmente não me permite muito tempo reservado exclusivamente à escrita. Em geral, escrevo em meio às tarefas diárias ou entre uma e outra, e isso varia conforme o dia, sendo que passo longos períodos sem conseguir escrever muito. No entanto, ultimamente, minha carga de trabalho formal foi diminuída, passei a dar menos aulas e a dedicar mais tempo à leitura, o que, para mim, significa escrever mais, como consequência natural. Nesse último livro, tive o suporte do meu marido para dar conta da rotina da casa e me dedicar mais à escrita. O resultado foi que cheguei a passar de 12h escrevendo direto, praticamente sem pausas, comendo porque ele cozinhava e me lembrava de me alimentar. Não sei se consigo ter uma relação saudável com o tempo quando se trata de escrever, tenho o impulso de viver exclusivamente para isso, como acontece quando nos apaixonamos. Talvez seja melhor que a vida me obrigue a fazer outras coisas, às vezes, para garantir minha sobrevivência.

Você escreve desde quando? Como começou a escrever?


Comecei a escrever muito cedo, desde 4 ou 5 anos já escrevia versinhos, aos 12 anos participei da primeira antologia, uma iniciativa local em Osasco, onde cresci. Já ali, eu dizia que desejava ser escritora quando adulta. A descoberta da poesia se deu nas Enciclopédias e nos livros infantis, e o impacto foi fortíssimo. A família se preocupava porque passava mais tempo lendo poesia do que brincando, e minha mãe conta que eu realizava trabalhos escolares em versos e, quando questionada pela professora, dizia que para mim era mais fácil escrever assim.

Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?

Após dois projetos que, para minha alegria, tiveram o apoio de editais públicos, estou em um momento de certa ressaca. É maravilhoso ter esse apoio para escrever, mas isso implica obedecer a um cronograma rigoroso, e passei os últimos três anos escrevendo dessa forma. Acredito que dar uma pausa e trabalhar sem ser para um projeto específico vai fazer muito bem ao desenvolvimento da minha escrita. Tenho um princípio de romance na gaveta, e pode ser o momento de estudar e exercitar a prosa de maneira mais descompromissada – devagar e urgentemente, como escreveu o Chico Buarque na canção Todo Sentimento.


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