Nascida em 1974 em São Paulo, capital, Cris Oliveira (@cris_taiane) é formada em Biblioteconomia e Documentação pela USP e trabalha com gestão de coleções digitais e metadados na sede da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, na Suíça, onde reside. Participou em antologias da I Jornada de Poesia Virtual e do VI Festival de Poesia de Lisboa, tem textos publicados na Ruído Manifesto, selo Off Flip e no blogue da Bibliotrónica Portuguesa da Universidade de Lisboa.
Em seu livro de estréia, “Escova de dentes” (104 pág), que foi finalista da chamada de publicação em poesia da Editora Claraboia, Oliveira embarca em um projeto experimental, que traz influências da poesia concreta, da poesia narrativa e do haicai japonês. Publicado pelo selo de publicação assistida da Claraboia, a Editora Paraquedas, o livro tem orelha assinada pela escritora Ana Rüsche, finalista do Prêmio Jabuti em 2019.
Confira a entrevista completa com a autora, abaixo:
Resumidamente, qual é a proposta de “Escova de dentes”?
São 81 poemas, longos e curtos, que falam da poesia, de linguagem, de saudade, de escova, de coisas banais e estranhas, como um banheiro químico, de café, do sol, da Califórnia, da Suíça, de São Paulo, fala da nossa falta de atenção ao belo, de amor, de elo, e sobretudo é um experimento brincadeira dança de idiomas e palavras, sons e pessoas, com muita curiosidade e humor.
Por que escolher esses temas?
Eu acho que são temas universais. Em algum determinado momento da vida sentiremos saudades, medo, ansiedade, comeremos um chocolate, usaremos distraídos uma escova, questionaremos comportamentos, veremos coisas diferentes e funcionaremos no piloto automático sem lembrar se já escovamos os dentes ou não. Acordaremos do outro lado da linha do tempo, esqueceremos. Buscaremos o mar, sempre. E, sem mesmo sair da cidade em que nascemos, podemos ter contatos com outros jeitos de falar, outras línguas na mesma língua ou em outras.
E como surgiu o livro “Escova de Dentes”?
O meu livro “Escova de dentes” foi criado ao longo de 4 anos sem rotina e sem metas diárias, mas também sem prazo. Eu não tinha nem mesmo a pretensão de fazer um livro. Assim, foram poemas soltos que escrevi em diversos momentos e aquilo foi tomando forma. Logo veio o desejo de levar a minha arte para mais pessoas além de posts no Instagram.
Em 2022, participei da chamada de poesia da Editora Claraboia, que também tem o selo de publicação assistida Paraquedas, e fiquei entre as cinco finalistas. Gosto do trabalho da Tainã Bispo, que criou a editora como um espaço possível para escritores independentes e sobretudo para vozes femininas da literatura contemporânea brasileira. O processo de edição foi muito tranquilo, a equipe foi muito atenciosa e cuidadosa, respeitou minhas decisões e fez excelentes sugestões e provocações para alguns poemas. A equipe que fez a revisão e diagramação foi também muito parceira e fez um excelente trabalho, sem falar da linda capa da Cristina Gu.
A sua poesia muitas vezes é descrita como “experimental”. Você concorda? Como você descreveria seu estilo de escrita?
Poesia contemporânea híbrida; flerto com a poesia concreta, com a poesia narrativa e com o haicai. Um dia, uma amiga poeta me disse “adoro como tu ousa nos teus poemas”. Eu acho que sim, eu experimento com a linguagem, com a língua, com formatos, com ideias e sentidos, e ao mesmo tempo tenho coragem de ousar quando tento reproduzir o que mais gosto na poesia: a liberdade de forma(to)s e as provocações. Talvez um novo ângulo, ou o vácuo, uma existência, uma ausência, muito e nada. Um segundo observando um vaso vazio já é muito tempo na vida moderna; uma escova na geladeira é um convite para recordar a última visita a um museu de arte contemporânea ou para rir da distração que é fazer muita coisa ao mesmo tempo. Enfim, entendi com o tempo (e terapia), que a poesia é um lugar que descobri e quis ficar porque nos permite ser espontâneos, relaxar e se entregar.
Nesse sentido, quais são as suas principais referências literárias? Quais livros influenciaram diretamente na composição de “Escova de dentes”?
A lista é longa: Adília Lopes, Marília Garcia, Alice Ruiz, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Bruna Beber, Ana Frango Elétrico, Angélica Freitas, Matilde Campilho, Filipa Leal, Ana Martins Marques, Gertrude Stein, Fernando Pessoa, Samanta Schweblin (esta última contista).
Dos livros, cito “Toda poesia”, de Paulo Leminski; “Dobra”, de Adília Lopes; “Dois em um”, de Alice Ruiz; “Ladainha”, de Bruna Beber; “Câmera Lenta” e “Parque das Ruínas”, de Marília Garcia e “Escoliose”, de Ana Frango Elétrico.
Como é o seu processo de escrita? Tem alguma meta diária, prazos ou rotina?
Escrevo diariamente nas horas vagas, mas nem sempre tenho versos proveitosos. Em todas as circunstâncias, antes de começar tento caminhar um pouco, apelando para um estado de contemplação, andar de ônibus ou trem (qualquer coisa que o condutor não seja eu) também me fazem arrancar o motor, assim como viajar, meditar (esvaziar a mente de pensamentos fúteis), e/ou ler. A poesia vem de fora, de movimentos, para mim, e na hora de escrever preciso de concentração e muito silêncio. Se estou num lugar barulhento, o que faço é por música clássica no fone de ouvido. Muitos poemas do Escova, ou a ideia deles, surgiram em momentos de andança e leitura, em lugares diferentes e foram concebidos ouvindo Bach. No momento de inspiração, paro o que estou fazendo para pelo menos anotar; depois fico horas e até dias trabalhando no mesmo poema. São raros os poemas-golpe de judô.
Eu sou uma pessoa muito organizada no trabalho e em casa, sou bibliotecária até na organização do meu armário (organizado por tipo e cor), mas uma rotina muito rigorosa para a escrita não funciona para mim. Regras também não. Mesmo nos tantos cursos de escrita criativa que participei, quando o professor nos dava um exercício simples de escrever sobre um tema ou com uma regra (exemplo: sem a letra a, em 10 minutos), eu travava. Folha em branco, mesmo. Ainda não sou capaz de me condicionar assim, provavelmente produzirei textos dissimulados. Tenho a impressão que o consciente é para reescrever, a criatividade e a loucura para criar precisam de outros recursos mentais ligados à espontaneidade e ao inconsciente.
Você escreve desde quando? Como começou a escrever?
Minha história de contato diário com a literatura e o cancioneiro popular começou muito criança, eu acho que é o caso de muitos brasileiros, somos muito musicais no país do carnaval. Seja na rádio ou na televisão (trilhas sonoras, vinhetas, publicidade) sempre tem uma música tocando, alguém cantando, nem que seja na casa do vizinho. Essa presença, um livro e um fone de ouvido (e um tapete de yoga) estão sempre na minha mochila. Conto isso porque eu acho que todo esse imaginário – as rimas e as métricas da canção e como e onde ela nos toca – foi muito importante na minha formação de poeta.
Eu gostava das aulas de redação na escola, mas adulta escrevi muitos textos técnicos, memorandos, relatórios. Eu acho que minha escrita surgiu num primeiro momento de uma necessidade de expressão, talvez numa crise precoce de meia idade, de identidade. Eu tinha perdido um pouco o contato com a música brasileira, sobretudo com a cena independente contemporânea fora do mainstream; nessa mesma época então descobri (o algoritmo das redes destacou) o programa Som a Pino, da maravilhosa Roberta Martinelli (que assina a quarta capa do livro), e, além de conseguir acompanhar o programa do exterior, trocava ideias com outros ouvintes e com ela na transmissão ao vivo. Mágico! Voltei a ir a shows, sempre antenada aos festivais de verão que traziam artistas brasileiros para a Europa.
Em 2018 viajamos até à Catalunha para ver Ofertório, e para minha grande surpresa, Caetano Veloso (e sua família) almoçavam no restaurante onde paramos para comer depois da longa viagem de carro. Obviamente, meus princípios jamais me permitiriam ir a seu encontro e tietá-lo ali em seu momento de tranquilidade antes do show, mas alguma força do destino quis que sim, e assim nos esbarramos no corredor, na saída. Puxa, ele me disse, pra lá de Barcelona, quando da minha boca, esse órgão-autônomo, saiu qualquer coisa, frases triviais incapazes de exprimir a salvação que é Caetano Veloso na vida da gente e a sua mais completa tradução de tanta coisa. Ele me deu um abraço, eu chorei à beça e concordei que a vida é boa, e correspondi àquele abraço, e pensei, puxa, por que não viver na imensidão essa de deslumbres? Passei a produzir poemas diariamente.
Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?
Meus planos até o final do ano são curtir a publicação do meu primeiro livro e me dedicar ao estudo e à prática de tradução literária.