Você está dirigindo o seu carro, apenas semi-atento ao trânsito, o suficiente para não provocar acidentes e para não atrapalhar o fluxo. A música que flutua no ar resfriado do automóvel, preenchendo o interior do carro, enchendo os ouvidos e os pensamentos, toca sem pressa, muito precisa em suas notas e acordes, sem distrações e sem floreios desnecessários, como vocais ou guitarras superestimadas, presunçosas. Não há berros, frases de efeito ou chorosas, clamando por identificação. Não há clichês. A música se limita a soar de modo suave e amigável, para criar uma trilha sonora que pretende ser a sua, da sua vida, sem roubar a sua cena, sem querer o pedestal; muitas vezes, sem ao menos querer ser notada.
É o mesmo no ônibus, no metrô, fluindo dos fios de seus fones, por ondas de bluetooth ao wireless headset, ou mesmo na caminhada pelo centro. Nesses momentos, não cabe dividir o momento, não cabe olhar senão para dentro. Uma música única como você, sem padrão, sem estrutura pré-definida, é a única que pode se encaixar com perfeição nesses preciosos instantes de introspecção. Insisto nessas imagens e quadros imaginativos para afirmar, sem medo, que a soundtrack do seu universo cinematográfico não pode prescindir da música ambiente.
Como na postagem anterior, vamos pegar carona em um lançamento para aprofundar no tema, um álbum que será liberado, integralmente, em abril de 2020, mas que já possui algumas faixas disponibilizadas nos streamings: o último trabalho do produtor e artista de música eletrônica Erwan Castex, mais conhecido como Rone. O nome do álbum é Room With A View (2020), e sua capa ilustra essa edição do #Minerando.
Rone foi aquele sujeito que, junto de nomes como Bibio, Aphex Twin, Helios, Lorn, Clams Casino, provou por A mais B que música eletrônica pode ser sublime (sem uso de alucinógenos). Esqueça aquelas batidas padronizadas, que você escuta nas rádios e nas raves e que é praticamente impossível se diferenciar apenas ouvindo, sem qualquer outra referência. Cada beat parece ter sido sampleado de forma peculiar. Confesso que não entendo muito bem desse processo de criação das batidas, mas realmente na música desses caras nada parece se repetir.
Esse senso de inovação e vanguardismos está presente desde a obra do pai da música ambiente moderna, o aclamado produtor Brian Eno, responsável direto e indireto por vários momentos épicos no desenvolvimento do gênero, não só na música eletrônica, mas principalmente atrelado ao rock, quando, por exemplo, ele contribuiu com ideias e arranjos em trabalhos festejados como o álbum Souvlaki, do Slowdive. Depois dessa masterpiece, surgiram vários outros artistas que deram continuidade aos novos vislumbres de Brian Eno, como Hammock, Sigur Rós e toda a reca de bandas do gênero post-rock, como God is na Astronaut, This Will Destroy You, Mogwai etc.
Mas há um fato curioso caso se procure as origens da ambient music. Ela surge com o pianista francês Eric Satie, mais conhecido por ser uma figura tão controversa como vanguardista. Satie pensava em sua musique d’ameublement como uma “mobília para preencher o ambiente”, uma música que “fizesse parte dos ruídos naturais e os levasse em conta, sem se impor, que tomasse conta dos estranhos silêncios que ocasionalmente caíam sobre os convidados, e que neutralizasse os ruídos da rua” (fonte: Wikipédia). Reza a lenda que, apesar de seu esforço, sua música ambiente não funcionou bem em seu tempo , “porque as pessoas insistiam em ficar quietas prestando atenção ao seu desempenho […], daí ele gritava nervoso: ‘Falem alguma coisa! Mexam-se! Não fiquem aí parados só escutando!’. Na época sua idéia pareceu uma piada” (idem).
Muitos pianistas atuais parecem ter continuado com maestria as ideias do grande criador da música ambiente e eles merecem citação honrosa nesse artigo, bem como lugar na nossa playlist, que segue adiante. São alguns deles: Ólafur Arnalds, Joep Beving, Alexandra Streliski, James Heather, Max Richter, Yann Tiersen, Ludovico Einaudi e Eluvium.
Bom, espero que essa brevíssima introdução à música ambiente possa ser uma contribuição efetiva na construção da sua trilha sonora. Aproveite nossa playlist para que, daqui para frente, os momentos mais introspectivos não sejam necessariamente preenchidos só por silêncio.
*Yuri Cavalcante
#O Minerando é uma parceria com o Teresina Cidade Invertida, para conhecer melhor o trabalho deles acesse @theinvertida no Instagram e Twitter.
**Playlist no Deezer: