É bem comum nas rodas de pessoas de uma geração que está envelhecendo a crítica áspera contra a produção artística de seus sucessores. Na verdade, esse é um efeito sintomático bem típico da meia-idade, uma prática inevitável da qual brota a frase “antigamente, as coisas eram melhores”.
A crítica da música contemporânea, em geral, é permeada pelas discussões quanto ao conceito filosófico de beleza e de questões morais, temas bastante sensíveis ao movimento implacável da janela de Overton, a qual fez até mesmo os responsáveis pelas mudanças mais revolucionárias de todo os tempos em questões de comportamento, os jovens hippies dos anos sessenta, surpreenderem-se com o modo de vida “degenerado” de seus netos das gerações Millenium e Z (ou Zoomer).
Mas aí vem a internet e nos apresenta um movimento musical que, ao mesmo tempo em que traça uma crítica cruel à musicalidade de nossos tempos, não é concebido nem sustentado por esses sujeitos imbuídos de sentimentos reacionários e/ou saudosistas, mas por artistas nascidos após a virada do milênio: eis o Deathdream.
Segundo o site Vapor95, esse termo é uma tag do Bandcamp associado a uma forma de arte estranha, com texturas hipersensíveis e “uma narrativa que sempre termina da mesma forma a cada lançamento: a pura decadência e morte da música”. Um subgênero do Vaporwave que transpira vibrações solitárias, sombrias e misteriosas, que fazem da experiência do ouvinte, segundo os autores, um verdadeiro “purgatório sonoro e sensorial”.
Parece exagero, né? Não, não é.
E desde agora faço um apelo sincero a pessoas que não estão em um bom momento ou que são suscetíveis aos efeitos de produções musicais perturbadoras e angustiantes: melhor parar por aqui e passar para outra postagem de nossa coluna.
A minha primeira experiência com essa coisa foi com o álbum “Reflection”, do artista “아버지”, nome que significa “pai”, traduzido do coreano. Ele começa com um som (reflection) que parece um CD enganchado, que vai variando notas graves e médias, sem uma melodia definida, que provoca um desconforto intrigante, como se estivéssemos a ouvir uma mensagem de outro mundo, não necessariamente no sentido cósmico, mas multidimensional.
A segunda música (waking up the same) é o que imagino que se ouviria em um salão abandonado no caso de os instrumentos ganhassem vida própria: um jazz fantasmagórico e angustiante que, sinceramente, caberia em qualquer vídeo de locais abandonados que a gente vê pelo Instagram. A sensação de solidão e de desolação predomina. A demora de um desenvolvimento lógico oprime e massacra o ouvinte.
O sentimento negativo dá uma trégua em someone else, terceira faixa do disco. Parece que entramos em uma típica track ambiente de elevador, sem tantas características peculiares, a não ser pela nota constante ao fundo que possui um vibrato assombrado.
A partir da quarta música, a coisa desanda e parece que o artista entra de cabeça no caos interior. Então vem loosing everything, sinking in, voices, tomorrow e untitled.
Chama atenção um dos comentários do vídeo que divulga o álbum no YouTube (tradução minha):
Se você já ficou obcecado por algum pensamento em sua cabeça, saberá o que este álbum está fazendo. Seu corpo está percebendo o mundo ao seu redor, mas sua mente não está presente. O tempo se move em um ciclo sem fim enquanto você está preso em algum lugar do passado, segurando memórias decadentes e corrompidas que dão apenas um sentimento de nostalgia melancólica. Você não tem certeza se as memórias aconteceram ou não, mas é tudo que você tem por enquanto. Não importa o quanto você tente, você não consegue acompanhar e viver no presente […]
O artista lançou um segundo álbum, intitulado “white death”, cuja capa ilustra nossa coluna.
Outro produtor de destaque nessa seara é o 暗い自然 (\”Natureza Escura\”, do japonês), que recria e modifica sons da natureza em alguma DAW (Digital Audio Workstation), fazendo uma imersão profunda na experiência proposta, a qual eu descreveria nos mesmos termos da que acabei de retratar.
Em entrevista concedida, a pessoa por trás do projeto “Natureza Escura” declarou que o
Deathdream não é sobre o som, é sobre a estética que envolve a música. Não apenas as capas do álbum, ou os títulos das faixas ou o que quer que seja, mas a narrativa inerente a cada trabalho. Os álbuns do Deathdream têm histórias anexadas a eles. Às vezes a história é óbvia e às vezes é um mistério completo, mas o estilo precisa de algum tipo de narrativa para funcionar bem.
Deathdream não é sobre o som, é sobre a estética que envolve a música. Não apenas as capas do álbum, ou os títulos das faixas ou o que quer que seja, mas a narrativa inerente a cada trabalho. Os álbuns do Deathdream têm histórias anexadas a eles. Às vezes a história é óbvia e às vezes é um mistério completo, mas o estilo precisa de algum tipo de narrativa para funcionar bem.
A mim, o tal Deathdream parece realmente uma crítica ao modo que atualmente se consome música e a desconstrução total de qualquer standard de normalidade ou aceitabilidade no universo da arte. Não que seja fácil criar as camadas sonoras que os artistas do estilo se propõem a fazer, mas não se pode negar que, para uma pessoa mediana de décadas atrás, isso sequer seria música.
Observação: essa postagem não possui playlist. Se bateu a curiosidade, escute qualquer artista do gênero. Não vai fazer tanta diferença no final.
*Yuri Cavalcante
#O Minerando é uma parceria com a Teresina Cidade Invertida. Para conhecer melhor o trabalho deles acesse @theinvertida no Instagram e Twitter.
mais um texto massa do sempre diferenciado Yuri! tmj!
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