Quando conheci Isaque de Moura, o primeiro sentimento que ele despertou em mim foi raiva. Li uma entrevista que ele concedeu e demorei a acreditar em suas palavras — assim como no protagonista do seu mais novo livro: “Morto, nada me faltará”. (Penalux, 2021). Ambos me pareciam cruéis demais, exagerados demais, tudo “demais”. Depois de um tempo, conheci, de verdade, Isaque e minha raiva passou; sobre seu protagonista meu sentimento também mudou: além de sentir raiva, também sinto desprezo.
A obra, num aspecto propedêutico, é narrada por um protagonista sem nome e que já começa com uma confissão — é viciado em prostitutas. Sempre fico em alerta quando o narrador tenta nos manipular, assim considero, uma manipulação. É a mesma que abre “Moby Dick” quando o narrador nos pede: “trate-me por Ishmael”; será esse o seu nome? Pois bem, da mesma forma que acontece em “Moby Dick”, enxerguei essa manipulação na confissão de nosso narrador/protagonista. Serve para quê? Para que tenhamos pena? Compaixão?
Dessa forma, depois dessa confissão, continua falando de si. Define-se como alguém inválido emocionalmente, não consegue manter um relacionamento com ninguém, pois exige muito dele e, à minha ótica, a única coisa que ele pode oferecer é o cinismo.
Passa os dias navegando por sites de garotas de programas, sempre à procura da próxima a ser consumida. Fica muito alegre quando consegue a promoção “coma duas pelo preço de uma”. Ele consegue manter seu vicio com o salário que recebe da Assembleia Legislativa (o emprego foi graças ao famoso Q.I deixado pelo seu pai, uma pessoa muito importante para a Casa). Nem de longe consegue ser um ótimo profissional, é um funcionário fantasma, que nunca pisa por lá, ao não ser quando foi intimado, caso contrário, pode ser exonerado por justa causa. Lógico que ele comparece, pois não pode perder sua renda que lhe garante o sustento do vício.
Vai de Consultor Fiscal a chefe de Arquivo Morto, nada mais parecido com sua vida morta e em putrefação. Afinal, esse emprego garante a ele manter seu vício. Depois disso, temos uma série de aventuras suas narradas de forma detalhada, pornográfica — eu diria.
Em meio ao lixo que é sua vida, ele relata ter medo da solidão, essa nem o vício consegue preencher. Pelo relato, seu problema é a depressão não assumida, mesmo que ele admita sua vontade de dar cabo à vida, coisa que exigiria coragem demais; e, assim, visto que sua covardia impera, não lhe resta muita opção senão viver.
No curso da narrativa, o que ele teve mais próximo de um relacionamento foi quando se envolveu com Valquíria, sua vizinha de condomínio, mas não durou muito, uma vez que Valquíria não era levada a sério e ela sentia necessidade de algo mais estável. Seu filho, Bernardinho, segundo o protagonista, estava condenado a um futuro nada animador. Uma projeção? Não sabemos.
Assim, ao longo do livro, consegui entender que o abandono do pai, já que era um filho bastardo, e o abandono da mãe, que precisava trabalhar para criá-lo, podem ter provocado nele esses sentimentos e esses comportamentos. Rita, sua então babá, foi uma referência na criação, fazendo o papel de mãe, mas, ao mesmo que exercia a função, foi a terceira pessoa a maltratá-lo quando resolveu abusá-lo sexualmente, aos cinco anos. É válido afirmar que ele é um exemplo clássico do determinismo? É um fruto do meio?
Isaque quis nos mostrar, nesse romance, sua personagem politicamente incorreta. Talvez tenha exagerado um pouco nesse aspecto, pesado um pouco a mão. Mesmo quando ele tem crises existenciais no cabaré — mostrando um pouco da sua humanidade. Fico pensando se ele não teria que ter tido um pouco menos de sadismo quando Natanael assume ter depressão, ou, quando Valquíria lhe joga algumas verdades e ele espreme os olhos pra tentar sair uma lágrima.
Não obstante, apesar de não concordar com a história, o autor conseguiu me manter presa até o final, mesmo que, às vezes, eu tenha me sentido nauseada. Sua técnica mostra domínio na narração dos fatos, descrições vividas e uma forma inteligente de nos mostrar o pior das pessoas contadas no texto. Apesar de tudo, consegui chegar até o final.
Não sei se “Morto, nada me faltará” se consagra como uma obra que mostra a materialização do homem pós-moderno, líquido e volúvel. O que sei é que, apesar de toda canalhice, sadismo, machismo e misoginia, ele mesmo, o protagonista, sente o peso de ser quem ele é; sabe o quanto é pesado esse não lugar que ele ocupa, de não ser um filho, amigo e nem o amor de ninguém. Devemos acreditar e ter esperança na humanidade ou assumirmos que, pelo andar da carruagem, as coisas só despencarão ladeira abaixo?
*Dani Marques
Morto, nada me faltará
Isaque de Moura
Penalux
216 páginas
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